sábado, 23 de janeiro de 2010

Trecho

"Sim, bonito. Mas antes de bonito é pungente, leitor; as metáforas que o homem fabrica são cápsulas que o tempo desfaz."

em The Very Short Stories, de Horácio Costa (1987)

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Adolescência

Na borda do canal, sentados, observando o portão.
Esperando devagar pelo sinal da escola com nome de marquês.
Lentamente,
os alunos atravessando aos poucos o portão
que se fecha ao mesmo ritmo.
Já no sinal, estamos
longe. Seguimos a avenida
de encontro à orla desta ilha.
Na areia molhada, num dia de semana,
não há turistas, apenas
alguns surfistas flutuam sobre as ondas,
garças pairam, contra o vento.
Em uma praça, sentamos sobre o colo úmido
das estátuas de seios duros os quais alisamos
em uma brincadeira, ao som do mar. Palavras,
e nelas, as fotos tiradas
em dias anteriores, iguais,
ainda não reveladas. Atravessamos
de volta a avenida e cruzamos
planos bairros por suas poucas ruas tortas
chegando à linha da máquina.
Nos equilibramos pelos trilhos e
ouvimos a todo o redor o apito de um trem
ecoando pelas paredes dos prédios,
sentimos um tremor na sola dos tênis. Corremos,
e com um leve impulso
nos penduramos nas escadas espalhadas pelos vagões
e ali, durante algum tempo, nos deixamos levar
flutuando sobre pequenas pedras,
sentindo o vento nos cabelos curtos
o peito sentindo o mantra dos trilhos.
O olhar colado ao vagão
fazendo do trem ainda mais infinito. Ao lado,
passava o estacionamento vazio,
o gramado, o cinza céu do dia. Pouco
que se percebesse
passava por nossas cabeças. Com um grito,
descemos.
Os vagões juntos
se distanciavam ao longo da linha curva dos trilhos. Caminhamos
ouvindo o outro lado do mesmo apito que seguia inerte
ecoando pelos prédios cada vez mais distantes
até o supermercado de frente à avenida,
aos trilhos e aos prédios
que ecoavam quase inaudível o apito do trem.
Fazia um dia claro dentro do supermercado.
Caminhamos pelos corredores até a lanchonete
e pechinchamos um preço arredondado
por uma garrafa de água
que não foi suficiente para matar a nossa sede.
Deixamos a garrafa em pé
no pátio vazio. E andamos.
Entramos no prédio, escadaria, o apartamento vazio,
pegamos a câmera com o filme dentro,
saímos do apartamento, vazio,
escadaria, prédio.
E, rápido, na loja de revelação,
entregamos a câmera, deixamos o filme
com as fotos de nossos dias na loja
e para nunca retornar lá.
Com a câmera vazia seguimos pelo entardecer
nos dipersando um a um,
prédio a prédio.
Adolescentes continuam sentados na borda do canal.
Ninguém nunca pagou por aquele filme.
Na memória, nada mudou:
a garrafa, as garças, os seios.
Na noite, ainda pode-se ouvir o apito grave dos trens.
E mesmo distantes uns dos outros,
é como se nunca tivéssemos saído de nossa cidade.
Continuamos os mesmos.