sexta-feira, 29 de abril de 2011

O corpo do outro

Às vezes uma ideia toma conta de mim: começo a escrutar longamente o corpo amado (como o narrador diante do sono de Albertine). Escrutar quer dizer vasculhar: vasculho o corpo do outro, como se quisesse ver o que tem dentro, como se a causa mecânica do meu desejo estivesse no corpo adverso (me pareço com esses garotos que desmontam um despertador para saber o que é o tempo). Essa operação é conduzida de uma maneira fria e atônita; estou calmo, atento, como se estivesse diante de um inseto estranho, do qual bruscamente não tenho mais medo. Algumas partes do corpo são particularmente favoráveis a essa observação: os cílios, as unhas, a raiz dos cabelos, objetos muito parciais. É evidente que estou então fetichizando um morto. A prova disso é que, se o corpo que escruto sai de sua inércia, se ele começa a fazer qualquer coisa, meu desejo muda; se, por exemplo, vejo o outro pensar, meu desejo cessa de ser perverso, torna-se de novo imaginário, retorno a uma Imagem, a um Todo: amo novamente.

Roland Barthes - Fragmentos de um Discurso Amoroso

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